Casamentos do mesmo sexo em Roma antiga

Possivelmente os registros históricos de casamentos do mesmo sexo mais arcaicos do Ocidente aparecem na época do Império Romano, em especial, a partir do século I EC; dois epigramas satíricos de Marcial aludem a tais casamentos (12.42) e a sátira segunda de Juvenal inclui uma invectiva mais longa e detalhada das cerimônias. Suetônio, Tácito, Dião Cássio e Sexto Aurélio Vítor informam que o Imperador Nero celebrou publicamente duas ou três cerimônias de casamento com homens; uma em que ele foi o marido e duas em que ele fez o papel ritual da noiva. Dião Cássio também se refere ao casamento do Imperador Heliogábalo no século terceiro com um sacerdote liberto e a História Augusta menciona que dentre os cortesãos do Imperador havia homens idosos com aparência de filósofos que se gabavam de ter um marido (Williams, 2010).

No século II o autor do mundo greco-romano Luciano de Samosáta, talvez inspirando-se ou refletindo os vestígios dessas cerimônias romanas, escreveu um conto de fantasia em que imaginou uma sociedade exótica habitada somente por homens na Lua, uma terra sem mulheres, onde até o nome ”mulher” era desconhecido. Nesse lugar alienígena os homens engravidam de outros homens e casam-se entre si:

’ ‘Imediatamente a muralha foi destruída e devolveram os prisioneiros, ou seja, nós. Logo que chegámos à Lua vieram receber-nos e abraçar- nos, com lágrimas nos olhos, os nossos camaradas e o próprio Endímion, o qual pediu que ficássemos junto dele e participássemos na fundação da colônia, prometendo dar-nos em casamento o seu próprio filho, pois entre eles não há mulheres’’.

Antes de mais nada, eles não nascem de mulheres, mas de outros machos. Na verdade, casam homens com homens, e não conhecem absolutamente nenhum nome de mulher. Até aos vinte e cinco anos, cada um deles casa fazendo-se de esposa, e dessa idade em diante faz-se de marido’’.

A gravidez masculina ocorre na barriga da perna, o que foi erroneamente considerado um efeito cômico; entretanto trata-se de um tropos literário que aparece na gestação de Dionísio por Zeus e também em uma história hindu sobre a gravidez de Vishnu, que gestou o deus Ayyappa na panturrilha, após ser inseminado por Shiva. O casamento dos selenitas parece um amálgama entre a pederastia e os rituais formalizados de união de homem e mulher, cuja implicação é potencialmente perturbadora; quando alcança a idade da maturidade, o rapaz torna-se homem e também marido. Subentende-se que, ou os casamentos são temporários, ou o homem mais velho que era o marido, torna-se a esposa, invertendo a relação pederástica.

Em ”Diálogos das cortesãs”, Luciano apresenta uma mulher que se descreve como ”casada” com outra mulher, que era ”sua esposa” por um longo tempo; a personagem lésbica de ”Diálogos” emprega o termo grego para si correspondente ao papel masculino em um casamento, em vez da expressão usada pelas esposas (Boswell, 1994).

Uma evidência do final do Império (IV século EC) na literatura jurídica da Constituição dos imperadores Constante e Constâncio preservada no código de Teodósio, parece confirmar a existência fascinante de uma tradição de casamentos entre homens durante os primeiros séculos do Império ao proibir que um homem se case com outro como se fosse mulher:

’ Quando um homem se casa* com outro homem como se fosse uma mulher que vai oferecer o que ele deseja, quando o gênero perde seu lugar; quando o crime é de um tipo que não vale a pena conhecer; quando Vênus muda de forma; quando o amor é buscado e não encontrado, ordenamos que os estatutos se ergam, que as leis sejam armadas com uma espada vingadora, para que aqueles infames que são agora, ou que possam vir a ser culpados, sejam submetidos a uma punição requintada’’‘ (tradução nossa)

Eva Cantarella e outros acadêmicos sugerem que o texto fala em ”casamento” de forma metafórica, com significado de união sexual na qual o homem faz o papel passivo; é uma hipótese plausível, mas é fraca em face do conjunto das evidências. Conforme Craig Williams (2010) observou, o verbo ”nubere*” usado no texto é regularmente empregado para o papel da noiva no casamento romano convencional. Além disso, de acordo com o autor, ”tal metáfora (referindo-se ao papel passivo num ato sexual) não parece estar em consonância com o estilo destes textos legais, que noutros locais falam mais diretamente, ainda que de forma eufemística, dos “corpos de homens” a serem usados de ‘maneiras’ femininas” (tradução nossa)

As cerimônias

’’O barbudo Calístrato casou-se com o robusto Afer da mesma forma como uma virgem se casa com um marido. As tochas brilhavam à sua frente, o véu de noiva cobria seu rosto e, Talasius, você não poupou palavras. Até o dote foi declarado. Ainda não estás satisfeita, Roma? Estás esperando que ele vá parir?”’

Marcial, epigrama 12.42

(Tradução nossa)

‘’ Graco pagou quatrocentos mil sestércios como dote a um corneteiro — ou talvez porque ele havia tocado com bronze reto— As tábuas [do contrato] foram seladas, foram declaradas as felicitações, uma grande ceia está posta, a nova noiva sentou-se no colo do marido.

Ó Nobres, necessitamos de um Censor ou de um Áugure para nós? Certamente ficarias horrorizado e considerarias maiores prodígios, se uma mulher parisse um bezerro ou se um boi parisse um cordeiro? Veste fitas, longas túnicas e véus de noiva quem, carregando os objetos sagrados oscilantes com uma correia secreta, suou sob os escudos de Marte. Ó pai da cidade [Rômulo], de onde [veio] um erro tão grande para os pastores Latinos? De onde veio essa urtiga que atingiu, ó Gradivo [Marte], teus netos? Eis que um homem, ilustre por sua linhagem e riquezas, é entregue como noiva a outro homem, e tu não sacodes o elmo, nem bates na terra com a lança, nem te queixas ao teu pai. Vai, portanto, e abandona as terras do campo severo [Campo de Marte], que tu negligencias.

Graco, empunhando tridente e envergando túnica na arena dos gladiadores, porém superou também essa monstruosidade.

O gladiador, mais nobre que os Capitolinos e os Marcelos, desonrou a arena com sua fuga; (mais nobre) que os Catulos e os filhos dos Paulos e dos Fábios, e todos os que observam no pódio, mesmo que a estes juntes o próprio [Imperador] a cujos custos ele então lançou a rede.

’’Amanhã, ao primeiro sol, devo cumprir um dever no Vale do Quirinal. ” ”Qual é o motivo do dever?’ ”O que perguntas? Um amigo será a noiva em seu próprio casamento e não convidou muita gente.’’ Se lhes for permitido viver, vocês verão; essas coisas acontecerão, acontecerão abertamente, e eles desejarão registrar tudo nos anais [públicos]. Enquanto isso, um imenso tormento aflige as ‘’noivas’’ que se casam, [o fato] de que não podem parir e, com o parto, manter seus maridos, mas assim é melhor, pois a natureza não concede nenhum direito às suas vontades sobre seus corpos: morrem estéreis, e a elas de nada adianta Lyde com sua caixa de ungüentos inchada, nem adianta oferecer as palmas [das mãos] ao Luperco ágil’’

JUVENAL. Satirae II, v. 117-142

(Tradução nossa)

Os elementos tradicionais da cerimônia de casamento romano da época são mencionados pelos satiristas; as tochas iluminando o caminho, o véu da noiva (que era cor de fogo), a declaração do dote, a popular canção de casamentos Talasius, um contrato assinado, uma ceia, convidados, as felicitações, testemunhas, cerimônia privada para poucas pessoas.

A travestilidade na cerimônia não deve ser entendida como identitária, mas como um elemento ritual de performance, e talvez, como símbolo do papel sexual passivo do homem travestido; conforme se mencionou acima, Nero casou duas a três vezes com homens, e foi o marido em uma dessas cerimônias, demonstrando que ser a ”noiva” (e o passivo) poderia ser meramente circunstancial.

Tanto no texto dos satiristas quanto na descrição dos historiadores, observa-se homens de alta posição social (com atributos másculos) unindo-se a homens de classe inferior, escravizados ou libertos, rebaixando-se (aos olhos da sociedade do período) socialmente, sexualmente e moralmente. A cultura romana enaltecia a virilidade do homem que penetrava as mulheres, os rapazes ou meninos e a prostituição (masculina e feminina) era legalizada e contribuía para arrecadação de impostos (os prostitutos masculinos tinham seu próprio feriado, no festival de Robigo, deus da ferrugem, no dia seguinte ao feriado das prostitutas). Relacionamentos homoeróticos com prostitutos e com meninos e rapazes escravizados ou libertos não eram censuráveis e o estupro de homens estrangeiros por soldados romanos em guerras não era incomum. Emerge daí um forte duplo padrão de moralidade, em que a homossexualidade poderia ser atacada, denunciada, vilipendiada, ridicularizada ou no extremo, elogiada, idealizada, desejada, ou valorizada a depender do contexto. Segundo a escala de valores de Juvenal, em particular, a transgressão de Graco não é pequena. Ele é apresentado como um homem da antiga aristocracia, de sangue mais nobre que o próprio Imperador, e um sacerdote Sálio do deus Marte, encarregado de conduzir os escudos sagrados em procissão nas ruas de Roma. E apesar disso, ei-lo aqui sendo ”desposada” travestido de mulher, por um músico (provavelmente do exército) de baixa estirpe. Mesmo o reacionário Juvenal, porém, não consegue escapar do duplo padrão; na sátira sexta ele aconselha um homem a não se casar com uma mulher, sugerindo em vez disso, que ele arrume um namorado.

Se nenhuma dessas tantas opções te agrada, não te serviria melhor um namorado? Que deitasse contigo — um amante Que não brigasse a noite inteira; que, deitado ali, não te exigisse presentes, Nem se queixasse de que teu corpo permanecia inerte, que tu não gemias como era de esperar?’’

Sátira VI, 34–37

(Tradução nossa)

Observe-se, além disso, que o crime de Graco ao se casar vestido de noiva, abdicando da sua masculinidade, não é a pior coisa que ele já fez, segundo Juvenal. Ter lutado na arena dos gladiadores sem dúvida foi mais grave; essa profissão era considerada muito vil, digna somente de escravizados. que nem eram considerados seres humanos. Por fim, as cerimônias de casamento do mesmo sexo não resultavam em ”matrimônio” válido por lei, conforme explicou Karen Hersch, em The Roman Wedding: Ritual and Meaning in Antiquity (2010). Assim como os casamentos entre escravizados não eram legalmente reconhecidos, casamentos entre homens ao menos até o período de Juvenal, não dispunham de reconhecimento jurídico. De acordo com Hersch, entretanto, os parceiros dentro dessas uniões parecem compartilhar affectio maritalis, um requisito para o casamento romano tradicional, sugerido a partir dos comentários dos satiristas a respeito da incapacidade das noivas masculinas de gerar filhos. Os autores das sátiras queriam com isso impressionar os seus leitores com a ideia de que os homens envolvidos nesses rituais pretendiam estar de fato casados, não apenas celebrar um casamento para desrespeitar as tradições.

Apesar de não ter legitimidade legal, as cerimônias de casamento entre homens no império romano dois mil anos atrás talvez cumprissem a função de expressar o desejo de validação dessas relações. Podem sugerir também o questionamento e recusa da moralidade hipócrita romana, além de conduzir uma aspiração à união eterna, semelhante àquela comunicada em Amores, de Luciano de Samosáta, por um personagem pederasta:

‘’… e se ele morresse, eu não suportaria viver, e daria estas minhas últimas instruções àqueles que eu amasse, logo a seguir a ele: que elevassem um túmulo comum a ambos, que misturassem os ossos uns com os outros e que não separassem uma da outra a nossa muda cinza’’ 

REFERÊNCIAS

BOSWELL, John. Same-Sex Unions in Pre-Modern Europe. New York: Villard Books, 1994. xxx, 412 p.: il.; 25 cm.

CANTARELLA, Eva. Bisexuality in the Ancient World. 2. ed. Trad. Cormac Ó Cuilleanáin. New Haven; London: Yale University Press, 2002. xx, 286 p. ISBN 0300093020.


HERSCH, Karen K. The Roman Wedding: Ritual and Meaning in Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. xii, 341 p. ISBN 9780521124270.

JUVENAL, Decimus Iunius Iuvenalis. Sátirae. Sátira II, vv. 117–142. Tradução nossa (com auxílio de inteligência artificial). Disponível em: http://www.thelatinlibrary.com/juvenal.html. Acesso em: 30 nov. 2025.


LILJA, Saara. Homosexuality in Republican and Augustan Rome. Helsinki: Societas Scientiarum Fennica, 1983. 164 p. (Commentationes humanarum litterarum, v. 74). ISBN 9516531199.


LUCIANO DE SAMÓSATA. Luciano [II]. Tradução do grego, introdução e notas: Custódio Magueijo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 292 p. (Coleção Autores Gregos e Latinos. Série Textos). ISBN 978-989-26-0799-3. DOI: 10.14195/978-989-26-0800-6.

MARTIAL. Epigrams. London: Bohn’s Classical Library, 1897. Book 12.


WILLIAMS, Craig A. Roman Homosexuality. 2. ed. Oxford; New York: Oxford University Press, 2010. 471 p. ISBN 9780195388749.

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